De acordo com o calendário cristão, dentro de poucos dias estaremos inaugurando um novo ano. A porta de abertura de 2009 está logo ali, faltam alguns poucos passos pra que alcancemos a sua maçaneta. Eu sempre idealizei a entrada de ano assim: uma porta que abrimos para entrar noutro tempo. Acho que essa imagem tem a ver com alguns dos meus simbolismos infantis e esses, certamente, muito a ver com os desejos universais e atemporais dos seres humanos de viajar no tempo. Indo pra frente ou voltando pra trás. Quem não imaginou isso ao menos uma vez? Quem nunca imaginou é bem fora da realidade. Se você nunca imaginou é um louco sem graça! A porta deve ser uma necessidade de concretude infantil, a via de acesso, o modelo de passagem que escolhi para ir e vir no tempo. Minha aproximação com o conceito de tempo é assim ainda hoje, totalmente dependente de algo concreto. Mantive a porta. Tem umas outras imagens do meu imaginário que vão muito além de meros representantes da concretude para eu captar o abstrato e, são perversamente reais. Mas, como o abstrato, são inatingíveis e dificeís de entender. Elas ficam muito vivas, especialmente nessas viradas de ano. Entre elas, estão as imagens dos ambulantes, dos andarilhos ... os mendigos. Os que nascem, sobrevivem e morrem nas ruas. Eles não sabem do tempo. O tempo pra eles não existe. Tanto fez, tanto faz e tanto fará o ano que estamos e o próximo que virá. A primeira coisa que perdem ou a que nunca construiram é a noção do tempo. Tempo de almoço, tempo de dormir, tempo de descanso, tempo de estudos, tempo de diversão...definitivamente não há o tempo pra essa gente e conseqüentemente não há os ritos de passagens ... mas talvez existam "as passagens". Por isso mesmo são andarilhos, vão e virão sem parar, sem rumo e completamente alheios a qualquer indicativo dos tempos. O fato é que essas pessoas da rua sempre chamam a minha atenção e alguns me intrigam. Sempre que posso - e entenda esse "posso" como uma mensagem que vem deles mesmos - eu falo com eles. Ofereço cigarro e tento driblar a desconfiança que esse povo tem de achar que vamos levá-los pra um albergue com banho e barba. Quando eu era criança tinha uma andarilha no meu bairro. Ela usava cabelos curtos, bem curtos, carregava uma sacola dessas de fazer a feira que devia ter recebido em alguma doação da sua vizinhança ou achado no luxo do lixo produzido por essa mesma vizinhança. Ela andava com uma bagagem enorme e mancava. Caso alguém, de qualquer idade ou sexo, se atrevesse a olhar pra ela por mais de trinta segundos, pronto! A mulher disparava um turbilhão de nomes feios. Logicamente que nós crianças, olhavamos por muito mais que os trinta segundos permitidos, para então, aprender um novo vocabulário. Muito bom! Tinha uma outra, figura feminina também, de outro bairro próximo ao meu, que virou lenda urbana. Sempre com muitas roupas, uma sobre as outras e todas com cores muito fortes. O mega do estilo dessa era a maquiagem. Usava maquiagem. Muita maquiagem! Um batom tipo "i love red" completamente fora do contorno da boca. Diziam que era rica, tinha apartamentos no bairro e como ficou louca o filho a colocou pra fora de casa. Essa não dizia nome nenhum quando olhavamos pra ela. Não dizia nada, nem sequer uma palavra. Apenas sorria, ria e gargalhava. De quê? Não faço a menor idéia. Mas, parecia estar sempre em dia de Reveillon. Tinha também o tal do velho do saco, personagem de rua da minha infância. Os velhos do saco existem no imaginário infantil e nas ruas. Eles deveriam cobrar cachê e patentear o nome e o estilo. O bom e velho estilo do velho do saco! O meu tinha cabelo grisalho e ralo, barba e lógico, carregava um saco nas costas. Acho que era um pano grande que ele embrulhava seus entulhos. Simpático ele! Sem muitos dos dentes e sempre de boca aberta rindo. Esse ria de bêbado. Vivia as voltas com o saco, a manguaça e o seu vira-latas. Ele sabia que as crianças o temiam. Dava pra perceber que sabia e acredito se divertia com isso, porque ao contrário da rabugenta dos nomes feios, ele tinha o poder de manter todas as crianças bem longe dele. Ele usava um paletó, que não tirava nunca. Calor, frio... sempre de executivo. Já adulta, outros personagens da rua surgiram no meu caminho. Conheci um andarilho muito impressionante. Ele escrevia poesias e eram lindas. Ele havia estudado e teve emprego um dia. Conheceu as regras do "senhor tempo". Caiu na vida! Bebia, bebia e bebia. Abandonou a mulher, três filhos meninos e o tempo. Talvez eles tenham o abandonaram, isso nem importa! Vivia no chão e falava coisas de visionário. Quando os rituais de final de ano se apresentam, fico mais atenta aos donos das ruas. Eles parecem se proliferar. Refiro-me aos verdadeiros andarilhos. Aqueles que na maioria das vezes nem nos pedem nada. Até andarilho tem uma versão pirata atualmente. Reconheço-os de longe, tanto o pirata quanto o original. Foi com um desses meus olhares mais atentos e sensíveis de fim de ano e, exatamente neste fim de ano, que conheci um adolescente. Pele escura, torrada de sol, o cabelo todo queimado, uns olhos com um fundo branco, digno de propaganda de colírio e os dentes mais e impressionantemente brancos que os olhos. Magro. E como todos os demais moradores de rua, se tentarmos acertar a sua idade, erraremos! Essa gente sem tempo não faz aniversário e ainda assim os anos passam rápido pra eles. Dá pra perceber se olharmos suas marcas e cicatrizes. Eu estava sentada numa parte sem cobertura de uma lanchonete, um lugar bem agradável. Parei pra tomar uma água e como não tinha "nada pra fazer" sentei, olhei o jornal, tomei cafezinho ... quando apareceu a figura. Nossa! O mundo da lanchonete parou. O segurança do prédio ao lado da lanchonete mostrou serviço. Uma loucura! E eu ali, hipnotizada olhando o atrevimento e a rebeldia do adolescente andarilho. Made in Jungle! Pensei! Ele chegou enfiando a mão dentro do açucareiro que estava sobre uma mesa sem cliente. Pegou um punhado do açúcar e enfiou na boca. Ele até podia passar desapercebido, se quisesse. Podia roubar o açucareiro inteiro, se quisesse. Não havia ninguém além de mim e três senhorinhas que também não dava pra saber sobre suas idades, mas se olhassemos com uma pouca dose de atenção, também perceberíamos as cicatrizes ... as das plásticas ... e o inchaço ... o do Botox... Ao contrário do anonimato, o adolescente andarilho, fez questão absoluta de se anunciar. Berrava para um dos funcionários da lanchonete. E ria, ria muito com a boca cheia de açúcar. Uma provocação misturada com um deboche violento. O funcionário foi logo espantando o garoto como se fosse qualquer coisa, não gente, nem bicho. Mosquito, maribondo ou pomba talvez. Nem sei! Sacudia um pano e dizia: " sai prá lá!" Ele nem ligava. Continuou xingando e comendo açúcar. Contava que no dia anterior, quando não estava sozinho, o tal funcionário tinha ficado "borrado". Não foi esse exatamente o termo mas é melhor eu evitar reproduções com um "sic" por aqui. As velhinhas plastificadas e apavoradas! E bem provavelmente, lamentando não terem aderido ao adoçante em gotas, como eu aderi. O segurança não saiu do outro lado da cerca que separava o prédio da lanchonete, mas xingou o menino também. Todo mundo mandando ele embora de um jeito ameaçador, como se espantam os maribondos, os mosquitos e as pombas. Pragas urbanas! E ele lá, sem tempo e muito cheio de atrevimento. Senti uma profunda vontade de dar minha água e oferecer um cigarro (todos os andarilhos fumam) não ofereci. Poderia estar incentivando sei lá o que naquele momento. Ele foi embora e eu fiquei pensando nele. Falei com as velhinhas da mesa ao lado e conclui que eram todas umas bruxas sem piedade nenhuma. Disseram barbaridades! Entre elas a máxima que comprova que não precisa ser andarilho pra se tornar um desconhecedor dos sinais dos tempos: "Porque não trabalham? Eles querem mesmo viver assim... são uns vagabundos!" A soberba das velhinhas alienadas. Acho que as velhinhas da minha infância eram mais sensíveis, menos desconfiadas e acreditavam mais na humanidade. Enfim, passaram-se os dias e como contei, olhei de verdade pra ele, sabia como era a sua figura. Tanto que reencontrei e reconheci o garoto, num lugar distante de onde eu o havia encontrado da primeira vez. Foi numa sinaleira com sinal vermelho, perto da minha casa. O meu carro era o primeriro da fila. Ele o artista da rua e o asfalto o palco. Fazia malabarismo com pedras, em cima do capô do meu carro! Olha a mensagem subliminar. Melhor que as da Coca-Cola! Ele me olhou sério, com cara de furioso, raivoso e veio em minha direção. Aff! Que garoto atrevido!Tanto quanto todo e qualquer adolescente, da sua provável idade. Mantive aberta a janela do carro, nem me passou pela cabeça fechar o vidro na cara dele. Jjá fiz isso por medo algumas vezes e confesso, sinto um aperto no coração em fazer, um constragimento, mesmo assim faço, como todos! Serei uma velhinha desconfiada também! Porém, não pensei nisso diante dele e não estive enganada nesse meu sentimento. Ele nem pediu e eu já fiz exatamente o contrário do que recomendam, dei dinheiro. Uns trocados. Ele não conferiu quanto era e imediatamente abriu o maior sorriso que eu já vi num andarilho. Largou um "Ahhhh!" E me chamou de "baronesa". Ficou ali, naquele mínimo restinho de tempo que faltava pro sinal ficar verde. Não saiu às pressas pra pedir em outro carro. Permaneceu ao lado do meu vidro aberto, gritando "essa é a minha baronesa". Não foi tia, nem princesa, nem gostosa, nem madrinha... foi baronesa! Eu devolvi o sorriso e adorei o título. Não perguntei de onde ele conhece a palavra baronesa, mas algo me diz que ele esteve na escola e que aprender o substantivo baronesa serviu pra alguma coisa na vida dele. Usa como adjetivo e ganha valores com isso. Diferente da versão da escola, mas ele sabe o que diz! Também não perguntei seu nome, porque escolhi um apelido perfeito para o adolescente rebelde, raivoso e andarilho que é. O menino do açúcar! Um doce esse guri. Sem tempo, sem casa e sem rituais ... descobri é cheio de máscaras. Consegui e qualquer um de nós consegueria enxergar através delas, se não fecharmos o vidro do carro, se acreditarmos que por de trás da nova porta pode acontecer uma vida um pouco, mesmo que bem pouco, mas ainda assim melhor pra qualquer um e, principalmente, se concordarmos em dividir com eles, um torrão do nosso açúcar. Espero encontrá-lo de novo. Torço por isso! Por causa dele faço o mesmo caminho, paro na mesma sinaleira, carrego uns biscoitos doces no carro e um trocado para o cigarro! O menino do açúcar, deve fumar.
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